domingo, 20 de fevereiro de 2022

AINDA ...

 


Dedico esta poesia à minha mãe e a todas as mulheres cuja potência foi roubada e demenciada  não só pelo tempo, mas sobretudo por uma vida submetida à lei do patriarcado e do machismo. Dedico também a todos os filhos  dedicados e amorosos que assistiram e assistem  impotentes a marcha de tudo aquilo que não conseguiram frear.  


"Ainda" te vejo

Olhando profundamente

Nos olhos do tempo. 

O espelho da vida

Não lhe mostra a mesma imagem.

Te vejo se procurando,

Se sentindo perdida de si,

Tentando se encontrar

 Em outro lugar

"Ainda" novo e desconhecido.

Te vejo indo

 Devagarinho

E ao mesmo tempo

Rápido demais.

Quero frear a marcha

Daquilo que rouba

Você de mim.

Fui furtada 

Daquilo que sonhei

Para você

Para nós.

Choro por um sonho

Que não posso mais sonhar.

A realidade que não previ

Está aqui diante de mim.

Já tentei fugir,

Brigar com ela,

Espanta-la.

 Não adiantou;

Ela está aqui

Mais do que diante de mim

Em mim,

Em você,

Em todos nós.

Te ver diferente de você mesma,

Daquilo que senti e amei,

Dói a alma,

Aperta o coração.

Um rio de lágrimas

Corre dentro de mim.

Desaguo,

Desabo.  

A cada dia 

Tento me reerguer.

Vou me reconstruindo,

Desconstruindo a filha

Para construir a mãe.

Fácil ser mãe de filhas

Complicado ser mãe da mãe;

Aprendizado novo,

Talvez o mais difícil!

Sinto-me sufocada,

Tento respirar

Para não me deixar morrer asfixiada

Por uma realidade

Que me  tirar o ar;

O ar da vida que sonhamos

E que não podemos mais viver.

Minha criança interna 

Chama por você;

Quer a potência e a lucidez

Que lhe falta hoje,

Quer a leveza que se foi,

Quer a alegria que não lhe contagia mais,

Quer o sorriso que se fechou,

Quer o otimismo que não está mais aí. 

A mãe que cuida

"Ainda" está!

"Ainda" me reconhece

"Ainda" me aguarda

"Ainda" me ama incondicionalmente

"Ainda" prepara meu alimento

"Ainda" me presenteia

"Ainda" me acaricia

"Ainda" me elogia

"Ainda" me aconselha

"Ainda" tenta fazer por mim

O que não sabe mais fazer.

"Ainda" se encanta comigo

Só não se encanta mais com a vida

E "ainda" assim gerencia seu desencanto.

"Ainda"...

Eis a questão!..

O "ainda" que "ainda" nos resta;

O medo do "ainda" que se vai 

E que sem retorno 

Possa se tornar

Nunca mais. 

Você luta;

Luta pela memória que vai devagarinho

Mas que "ainda" está aí. 

Perdeste o véu que escondia

A insanidade esculpida 

Com a matéria prima

Daqueles que lhe roubaram 

O direito de SER;

Ser o que desejou SER de fato.

Agora sem freios,

Você atropela todos

Com sua revolta

De não ter volta e tempo

Para SER.

Sem máscaras,

Você mostra uma outra face;

Face desconhecida.

 Muitos não querem ver.

Querem ver sua cara de boazinha

Sua boca calada

Sua obediência incontestável

Seu jeito doce.

Agora amarga,

De cara fechada,

Incomodando a todos,

Ao  invés de defender,

Você ataca. 

Você grita;

Desabafa.

Liberta o que ficou sufocado.

Pede socorro também.

Quero salva-la;

Salvar a vida que sonhaste

E que se afoga

Nesta maré pesada.

Você segue

Titubeando

E ao mesmo tempo

Firme,

Expressando uma verdade 

Que incomoda ser ouvida

Por quem nunca lhe escutou.

Sente traída e roubada por muitos,

Até mesmo por aqueles que nunca lhe fizeram mal.

Pura projeção!!!

Projeção de todo mal e de tudo que lhe foi roubado lá atrás.

Berra como uma insana,

Quando na verdade

Nunca estiveste tão lúcida.

Vê o que não deixaram

E o que não teve coragem de ver e viver lá atrás.

Descobre teus olhos,

Teus próprios e verdadeiros olhos.

Quer ver com eles.

 Finalmente enxerga a cegueira imposta

E o implante de uma visão

Que não era a sua.

Furaram teus olhos!

Cega de raiva

Mostra sua bravura.

Mais que reparação,

Quer Direitos:

Direito de Ser e Ter:

Ser o que lhe foi usurpado,

 Ter o que lhe é de direito. 

Cobra uma dívida

Que não pode mais ser paga. 

Alguns fingem paga-la

Com migalhas

Que não engole mais.

Vomita em todos

O mal que sempre esteve aí,

Que se transformou

No seu mal estar agora. 

Todos se sentem mal,

De um mal que julgam 

Você estar causando.

Vendo tudo isso,

Descubro na sua demência a nossa.

Você esquece os fatos presentes,

A gente esquece 

 Fatos passados;

Passados por você

Como se eles pudessem

 Ser passado,

Ter passado.

Tudo passa por você agora.

Tentamos frear sua dor

Tentamos frear sua agitação

Tentamos frear sua agressividade

Tentamos frear  sua revolta

Só não tentamos frear a nossa incompreensão

Nos atropelando com nossos desentendimentos.

Psicotizamos  a sua dor

Tentando remediar

O que não tem remédio mais.

Como nunca fizera antes,

Você bate de frente,

Ultrapassa na faixa contínua,

Acelera o que tentamos frear.

Você sabe como ninguém

Que não pode parar.

Vai seguindo para um lugar

Que não conseguimos enxergar.

Os últimos capítulos de sua história,

Você escreve e se reescreve.

Contaste a mim tantas histórias,

Agora é minha vez de ler a sua.

Transformo em poesia

Dor e desalento.

Te aceito,

Te admiro.

Assim!

Exatamente como está agora.

Você está aí como nunca esteve antes

E isso é simplesmente

Maravilhoso!!!

Muito doído e confuso,

Mas "ainda"  assim

Maravilhoso!!!

Te amo

Te compreendo

Te acolho.

Velhinha?

Não!!!

Acolho uma nova mulher;

Renovada!

Uma admirável mulher,

Mãe de tudo isso

Que aprendi

E estou aprendendo agora.

A mamãe que sempre foi

Me deste agora uma função valiosa:

Desmascarar a hipocrisia

Gestar, parir e cuidar

Da nossa verdadeira história.

Farei o melhor!

Por você

Por mim

Por nós duas

Por todos nós.

"Ainda" que me custe

Muita dor "ainda,"

Conte comigo

Sempre!